quinta-feira, 19 de abril de 2012

Cinquenta anos depois

À janela, a ver os bois a passar, que naquele tempo, eram muitos...
Eram grandes e medonhos! Ui, se eles me escornam! - Pensava eu.
Dizem que estes animais não vêem, são daltónicos ou que só identificam o vermelho, sei lá. Ainda sou pequenina e tenho medo de bois.
Também via as cabeças das mulheres, cobertas com aqueles escuros lenços e os das viúvas, então eram mesmo pretos. E os chapéus dos homens! Ah, isso adorava observar! Tinham assim uma aba larga e uma fitinha a abraçar o tecido que me parecia ser tão fofinho e macio. Quer dizer, acho que seriam macios apesar de não os poder apalpar. Sim, eu estava lá em cima a espreitar.
Acho mesmo que já não se fazem chapéus assim..
Não tinha grande permissão para estar ali à janela, mas sim, nas tarefas caseiras, como limpar o pó, arrumar as coisinhas, bordar e tricotar a camisola pro cuco. Nunca entendi o porquê de ter de vestir o animalzinho que tão bem canta. Aquilo era mais uma treta para entreter as meninas, pois era trablho tão moroso que nunca tinha fim. Um dia, caíram tantas malhas que julguei ter posto em risco o trabalho. A minha mãe, num ápice resolveu a situação e lá tive de continuar, sem grande vontade, bah.
Estava frio lá fora! Encontrei uma brincadeira para fazer...foi ao acaso que a descobri. Bufar no vidro e depois fazer uns desenhos. Nunca tive jeito para o desenho, mas era divertido...
Antigamente havia mais frio do que agora. Adorava ver os lindos e brilhantes candeeiros nos beirais das casas, a largarem as pinguinhas derretidas por um cibinho de quentura do ar. Olhava para um lado e caía uma, para o outro e mais outra a pingar naquela pedra ali no caminho, assim muito devagarinho. Bem, o meu pescoço também rodava lentamente porque era pequenina...
Nesses rigorosos Invernos, a água tralhava sempre na torneira. Ela vinha entubada, já há muitos anos, de lá de cima do Castelo...sei lá porque se chama assim, nem tem castelo nenhum...todas as manhãs, era o mesmo ritual. Pegar na tenaz, acho que já não conhecem este utensílio, há dias encontrei uma, nos escombros do velho armazém. Deve ser centenária! Não! É igual às outras...preta e de ferro, acho eu. Bem, então davam-se umas boas trochadas no tal cano, o gelo soltava-se, ah...havia a cena da água quente e o gelo começava aos poucos a soluçar e assim tipo vómito, lá ia saindo no estado líquido. Era divertido!
Que engraçado! As palavras são como as cerejas, ou coisa assim...tenaz= lareira. Lareira= pote. Pois é, lembrei-me do pote grande, dependurado no interior da lareira através de uma cremalheira. Olha, ainda lá está na cozinha da aldeia, mas agora com outra utilidade...
Aquilo botava muito fuminho, destapando um cibo do testo... fazia assim umas ondinhas escuritas...que subiam pela chaminé acima, para irem contar alguma inconfidência da família aos passarinhos ou até aos ratos, não o sabemos. Mas este pote conta muitas estórias: às vezes dava-lhe com um pau e ele dançava, dançava, até cansar. Outras ficava ali de lado, fora do lume para dar lugar ao assador das castanhas. Ai, ainda haverá algumas no armazém? Se o ratos não as encontraram, no próximo fim de semana, sai pote...ai, sai, sai!Ah...este pote estava sempre quentinho!Bem, de noite, descansava! E cheio de água, para lavar a louça e para outras coisas que agora não vem ao caso, bah.
O granizo é que era giro! Fazia uns risquinhos ao cair. Há dias cairam muitas bolinhas do céu. Acho que é do céu que cai, mas também caem outras coisas...
De neve, tenho de falar. Aqueles lindos tapetes tão macios e branquinhos. Lembrei-me agora: um dia mataram o reco. Disparate! Espectáculo medonho! É que o tal tapete ficou todo vermelho e eu passava ao lado...Quando se trepava nela, fazia cre.crrrrrrrre..mais ou menos assim, bah. Um dia caiu um telhado, quase em ruína com o peso da neve.
E chuva? Oh, isso temos de falar...Antigamente chovia mais. Agora o povo clama por ela...mas até tem chovido um bocadito bem bom.Os pãezinhos estão verdinhos e arreguichados. A aveia do Zé  Manel, antes amarelada e meio seca, agora mais bonita. Gosto de ver as coisinhas da terra bonitas e bem tratadinhas. Os campos ficam lindos!! O Osvaldo, do Poilo, já plantou as batatas do cedo e até já espreitam da terra.. claro, a água do céu chamou-as...o Tó tb plantou o cebolo. O Eurico e a Virgínia plantaram alfaces, mas as pitas alheias debicaram-nas...até eu, se fosse pita!
Então, estava eu à janela, pequenina... eis que, de lá de cima do Lugar do Castelo, nunca lá vi castelo nenhum, sei lá...aparece um homem, com ar apressado e com ar de missão cumprida.
De cabelos em pé, e toda arrepiada, observo o caminhar do homem, aproximando-se do local. No ombro, um tubo, acompanhava os movimentos do senhor, coisa mole, e com côr que nem sei definir.
Há dias soube que era um vestigo!
Mas o que é um vestigo? 

Leonor Moreira

6 comentários:

  1. Bravo amiga! Mas alguem vai responder a pergunta ou que?

    Bom fim de semana!
    Lula

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  2. Eu acho que um vestigo é um bicho enorme...quando se ve uma cobra grande costuma dizer-se:
    "ERA CÁ UM VESTIGO..."

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  3. O João tem razão, um vestigo é uma cobra grande ver " Dicionário de Transmontanismos" de Adamir Dias e Manuela Tender.
    O texto é que nos mostra uma outra faceta da Leonor, desconhecida para a maioria dos que a conheceram em outeiro seco, e quase parece de uma pessoa com dupla personalidade.
    O texto é o retrato de uma jovem com as vivências comuns à maioria das famílias rurais. Mas quem a conheceu em Outeiro Seco, não lhe reconhece estas vivências, pelo contrário,era uma jovem com vivências urbanas, pese embora vivesse numa aldeia.
    É a simbiose destas duas experiências de vida, complementada com a sua formação, na actual capital europeia da cultura, que hoje nos brinda com estas prosas, assim como doutras vezes, com as suas pinturas.
    Parabéns pelo texto e por partilhares esse passado hoje difícil porque as realidades do meio rural estão diferentes ainda que haja quem diga que com o rumo que as coisas estão a tomar ainda teremos de retomar a hábitos antigos.
    Cumprimentos,
    Nuno

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  4. Olá amigo Nuno,
    Obrigada pela visita e comentário.
    abraço
    leonor moreira

    Então não puseste avental lá p'ros lados de Cantanhede?
    abraço à tua Celeste

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  5. A doçura das palavras simples e límpidas como a àgual da poça do Bloural enchem de alegria quantos as entendem. Degustam-na como quem come o manjar que a natureza reserva apenas aos que conhecem o ser, o pensar e o estar dos do Planalto.
    Parabéns pelo tempêro!
    Gil Santos

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  6. Ai o meu priminho Gil, esteve aqui.
    Obrigada pelas tuas "doces" palavrinhas.
    bjs
    Leonor

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